quarta-feira, 29 de junho de 2011

Nada

As galáxias dormem,
o universo emudece.
Extingue-se a voz dos deuses.
Fica o silêncio 
um nada pequenino,
só isso:
nada

Orlando Varejão pousou a caneta e olhou para o que acabara de escrever. Observou a letra retorcida – algo gótica, dissera-lhe um dia uma antiga admiradora, pestanejando muito, cheia de uma secreta esperança de ascender ao mundo literário, secretamente esperando que ele fosse o porteiro. Coitada, não se lembrava já do seu nome. Altina, seria? Nem sonhava como ele próprio estava longe desse olimpo. Tinha publicado dois livros (edição de autor, claro.Uma despesa e tanto, e nunca recuperada na totalidade). Tivera uma boa crítica no primeiro,  "Passos Nocturnos".  O segundo caíra no meio de um profundo silêncio, que ainda durava.
Mas sim, a letra era algo gótica. Em tempos isso orgulhara-o: distinguia-o dos demais. Agora já ninguém ligava a isso. Todo o mundo escrevia no computador, ninguém queria saber de caligrafias. Só ele teimava em rabiscar papéis com a sua velha tinta permanente, mas era cada mais difícil encontrar tinteiros. Nunca se habituara aos computadores, paciência. “Lá terei de arranjar uma esferográfica”, dizia a si próprio de cada vez que tinha de correr dez papelarias antes de conseguir arranjar um tinteiro.
Olhou as palavras marcadas no papel. O nada. Que sensaboria. A musa andava arredia. Talvez não voltasse mais, quem sabe. Suspirou. O vazio aumentava à sua volta (ou dentro de si?), ia crescendo como uma bolha estéril, à mesma velocidade a que rareavam os tinteiros. (talvez fosse uma boa metáfora?... Não, não era).
Apercebeu-se de que lhe doíam as costas.
Olhou o relógio, suspirou de novo. Cinco horas à secretária e... nada. Como no dia anterior, no outro antes deste, e no outro... Lembrou-se de um vago poeta francês, o Trajard (ou Prajard? não se lembrava), que encontrara num círculo literário em Les Jalouses, uma vilória perdida na Catalunha francesa que promovia tertúlias de poetas desconhecidos. Tinha sido convidado, e o Prajard também. "Une merde, je te dis", lamentava-se o francês depois de ter bebido três pastis de seguida.
Enfim, "côneries", como diria o Prajard.
Levantou-se da elegante cadeira de braços, libertando-se da imobilidade com muitos estalidos de ossos. Olhou de novo o papel sobre a secretária e num impulso que a si próprio colheu de surpresa amachucou-o com firmeza e –  apercebeu-se – com um prazer que crescia à medida que a folha lhe ia mirrando nas mãos. Depois lançou-a no cesto dos papéis e saiu, aliviado. Ia à Baixa apanhar sol e beber um café no velho Aviz. Àquela hora não haveria por lá poetas. Talvez encontrasse a malta da sueca. Esperançado, acelerou o passo, descendo a calçada que brilhava docemente à luz da tarde.

terça-feira, 28 de junho de 2011

Memórias novinhas em folha



Assim se passam dias e dias, as horas mortas, os minutos de insónia e marasmo abrasador, que se transformava em sopor, lentamente, mas sem adormecer.
Infelizmente, nunca consegui que esta reconstrução redentora – a minha fértil imaginação –, funcionasse em relação ao presente, ou ao futuro imediato. Tudo acaba na velha ambulância cor–de–laranja que me trouxe para este tórrido lugar. Para fora de casa, do Banco... para longe da Luizinha. Afinal, dentro de um homem só e encarcerado, sobressai a amargura.
Bem vistas as coisas e no cômputo geral, a angústia cresce a cada dia que passa e o sofrimento multiplica–se pelos minutos ansiosos, dolorosos, sempre iguais uns aos outros, cercado pelas paredes e pela modorra. Para me abstrair e empurrar o tempo, tento puxar pelas recordações que, de alguma forma, me impedem de pensar tanto em mim próprio. Coisas do dia–a–dia no Banco – episódios caricatos com clientes –, ou cenas dos filmes que gosto, das séries de televisão predilectas. Quando o faço, torno–me eu no herói da ficção e divirto–me à grande. Cheguei a ser apanhado a rir sozinho, a deambular pela cela, e os guardas devem ter pensado que estou a enlouquecer. Isso, ninguém estranha, até devem achar engraçado, uma variação ao seu próprio monótono quotidiano, que acredito que ser guarda também não deve ser fácil.
Quase nada acontece neste lugar, como se tivéssemos sido esquecidos e entregues à moléstia.
Se eu tivesse aqui o meu laptop, quando o desligasse nem aparecia aquela frase do «a guardar actualizações recentes».

segunda-feira, 27 de junho de 2011

Culto do novíssimo


Existe um mito da moda segundo o qual as novas gerações são fantásticas e o que é velho deve ser dispensado. Elogia-se o grau de especialização do mundo contemporâneo, o conhecimento em detalhe, o saber compartimentado, a massificação do senso comum. Ao mesmo tempo, ridiculariza-se o clássico. O que é antigo deve pertencer ao museu. Nas conversas, evitam-se temas difíceis, pois isso é correr o risco de ser confrontacional.
O nosso tempo podia usar como definição a palavra "giro". Abarca o eclético, o fútil, o kitsch, a mistura de estilos, a imitação. Também o meio-termo e o politicamente correcto. A arte deve incluir o soundbyte, o chocante pelo chocante, mas acima de tudo deve evitar a lentidão que se exige quando se visita o mais profundo da alma. 
Deixou de haver tempo para pensar, pede-se a ruptura com o passado e com a memória. Só deve existir o futuro.
E esta mentalidade tem aspectos de crença. É difícil de contrariar.

domingo, 26 de junho de 2011

O ‘Western Tecnológico’ de Maylis de Karengal




Espaços vastos. Estradas sem fim. Cidades feéricas e futuristas. Ecos de John Wayne, Jack kerouac, Philip K. Dick. Utopia a roçar a distopia. É por estas fronteiras que a escritora francesa Maylis de Karengal constrói o romance que lhe valeu o prémio Medicis em 2010, “Nascimento De Uma Ponte”, publicado agora em Portugal pela Teorema.
“Coca é promessa de grande vida. Vem gente de longe, o corpo impaciente e no fundo dos bolsos o suficiente para subsistir durante alguns dias: portanto o turnover dos homens e dos desejos, faces escaldantes e pupilas cintilantes, vias rápidas como motores centrífugos, arranha-céus abertos (…) ouvem-se os espasmos de betão e corações imersos numa turbulência comum…”. É assim Coca. Uma cidade imaginária entre um estuário e uma floresta, onde vai ser erguida a maior ponte suspensa do mundo.
“Quis fazer de Coca um épico sobre a paisagem e sobre a luta arcaica que o humano trava contra essa geografia brutal da Terra, para fundar os seus lugares de abrigo, as suas aldeias, as suas cidades.”, diz Maylis que esteve em Lisboa no âmbito do Festival Silêncio. “ Este livro é um western tecnológico. Tem heróis quase silenciosos. A acção nasce das suas pulsões, dos seus desejos, medos e ambições e não tanto das suas palavras. Mas a grande personagem é o mundo físico, a natureza”.
Para a construção do colosso arquitectónico afluem centenas de trabalhadores. Vêm de todo o mundo. São máquinas de trabalho. Silenciosos e desafectados Quase inumanos. Fixam-se no estaleiro que será palco para os grandes acontecimentos da narrativa; uma micro-cidade que reproduz as relações de violência e servilismo da grande cidade.
Maylis reconhece que a ponte foi apenas o “dispositivo” que lhe serviu para juntar no mesmo espaço uma série de personagens que”são apenas forças mecânicas, paradigmáticas das sociedades humanas criadas sempre contra a natureza”.
Este livro está, porém, longe de ser um manifesto ecológico. E se o estaleiro remete para a ideia de uma obra cuja construção une os homens em torno de um projecto comum, a floresta que envolve a cidade e onde vai desembocar a ponte, remete para um mundo cheio de terrores arcaicos. “Toda a história se suporta no mito da criação que continua presente no nosso imaginário por mais hipertecnológicas que sejam as cidades e os instrumentos”, diz a escritora.

Texto publicado no Diário de Notícias de 25-06-11

sexta-feira, 24 de junho de 2011

Bobeei, dancei


1. E logo o moleque decidiu nascer no dia da final da Copa do Mundo. Eu pegara um rádio de bolso para ouvir o relato falado e logo apareceu na ladeira a santinha da dona Ermelinda, dizendo, seu Florindo, o estão chamando lá na maternidade do doutor Rubem Fonseca, porque o neném está nascendo.

Puta sorte, logo naquela hora, em que o Brasil descia no gramado.

A maternidade fica no limite da zona sul, é preciso tomar ônibus. Me meti à estrada, a pensar em como seria a esplendorosa final, quero dizer, mas também me preocupava com a Mônica, minha mulher, uma mulata braba e cheirosa, que amo muito, embora a meu jeito.

Naquela altura, eu escrevia novela romântica para uma editora de livro popular, das de dois cruzeiros. Estava bolando uma história de herdeira apaixonada por cara caipira, assim como eu, moço enxuto e fogoso, dentuça grande e bigode à Rivelino.
Tinha saudade da Mônica, que a minha sogra nessa manhã levara para a maternidade, pegando carona do siô Inácio, que tem um táxi lá na favela. A criança deveria nascer no dia seguinte, só no dia seguinte, mas se antecipou, feito ponta-de-lança. Catástrofe para mim! Dona Ermelinda me deu a bruta notícia, mas notícia deve ter sempre hora adequada, não deve ser coisa extemporânea (O leitor se interroga com essa de extemporânea, mas convém meter de vez em quando uma palavra mais grossa e de belo efeito).

Saí do ônibus na ladeira de Santa Engrácia, a um quilómetro, ou mais, da maternidade, porque vi um botequim aberto onde se reunira uma agitada multidão de torcedores. Por isso desci. Havia um televisor, com um esplêndido preto e branco, que me permitia ver quanto apertado era o terreno de jogo. Os brasileiros corriam pelo campo fora, pareciam ter asas; os italianos eram circunspectos e ferozes, mas semelhantes a bicho caçado e sem rota de fuga. A turma no botequim lembrava congresso de catatua, olhando um só ponto da floresta e meditando, com subtileza, nas agruras da vida.

segunda-feira, 20 de junho de 2011

A leitura


 A voz corre numa toada monótona, as palavras umas atrás das outras, todas seguidas, a dizer de coisas distantes, de susto. Rosa Maria mergulha os olhos no jornal e recita a ladainha que só ela sabe decifrar no emaranhado enigmático dos sinais. É como uma sacerdotisa a oficiar culto, sentada no único banco da varanda que dá para a horta ensolarada. Os outros rodeiam-na, de pé. Chegam-se, na ânsia de ouvir, num silêncio de missa, sem tosses. Os homens desbarretaram-se, por respeito. Escutam, de olhos no chão.
“...Os tanques saíram de madrugada, depois do sinal combinado entre os revoltosos, e as tropas do golpe tomaram de assalto os quartéis do regime. Houve disparos e há um número incerto de feridos, mas os militares sublevados levaram a melhor. As ruas estão a ser patrulhadas para assegurar a estabilidade e a cidade está calma. A junta militar que assumiu o poder restaurou os direitos cívicos e o general supremo fala hoje à nação”.
Rosa Maria ergueu a cabeça e olha em redor, mas não vê os rostos ansiosos, à espera de um sinal, de uma palavra dela. Está muito longe dali, da horta cheia de sol, onde os pássaros debicam a terra livremente.
Os outros aguardam em silêncio, enquanto ela se demora ainda, lá longe, na rua dos Mártires, percurso diário a caminho do hospital, na cidade agora em sobressalto. Conhece cada uma das pedras daquela calçada, com as suas marcas impressas de vidas antigas. Caracóis gigantes enrolados sobre si próprios, cornucópias de volutas caprichosas, vestígios de bichos há muito desaparecidos. Agora, quem sabe, estilhaçados sob as lagartas dos tanques.
– Acabou? – a voz do António Malhadas mais afoito, ou mais nervoso, a quebrar o silêncio. Os outros agitam-se, como num fim de missa. Perdeu-se o recolhimento. Os homens murmuram, desassossegados.
Rosa Maria olha em volta. Vê os estorninhos em voos incertos entre as macieiras, a pequena torre branca da capela a destacar-se sobre os telhados negros. Mas os olhares deles são interrogações. Que tropa revoltada é essa, mais os seus tanques? Os feridos, que é feito deles? E esse general, quem é? Algum malandro que para lá anda a comer à conta, é bom de ver. Todos iguais. Que não venham por cá.
– Acabou a notícia – confirma Rosa Maria, num gesto de mãos vazias. – Não diz mais nada. Depois vem a inauguração de um fontanário noutra cidade, com festa, desfile da banda e leitão assado. E o caso de um moço de fretes abalroado por um carro eléctrico. Partiu o farol dianteiro ao eléctrico, mas só fez um galo na cabeça. Querem que leia?
 – Aí valente, testa de boi – o Mário da Aninhas na gozação. Risada geral. – Desses é que já há poucos –. Mais risos a estalar na tarde mansa. Rosa Maria também ri. O grupo esmorece depois, a pouco e pouco. Assoma de novo a inquietação, quase se pode palpar.    
 – Acha que vêm por aí, menina? – Pedro Santa, corpo mirrado de velho, fez a pergunta que andava no ar. Não seria a primeira vez que teriam de fugir da tropa fandanga, caída ali a comer do que havia, sem pedir licença, a desgraçar um pobre. A velha Matilde, que Deus tenha, é que contava, de ouvir contar.
Rosa Maria não sabia se os militares viriam, Vivia na cidade, conhecia-lhe o bulício de gente e carros. No hospital, mudava as ligaduras aos doentes, chegava-lhes um copo de água e os comprimidos, dava as injecções que os médicos prescreviam. Fazia-o com destreza, ninguém reclamava. E também ouvia os queixumes e limpava os corpos sofridos. Mas não sabia nada de golpes militares, nem de política. Só o que lia nos diários, de vez em quando, nos tempos mortos do hospital. De férias na aldeia, em casa da mãe, sabia ainda menos. Só podia ler-lhes em voz alta o jornal, trazido nessa manhã pelo carteiro.
– A tropa tem mais que fazer. Guardar os quartéis, segurar aquilo. Para que viriam a este fim do mundo? Só se fosse para vos comer as morcelas e a carne das salgadeiras. Mas disso eles têm lá muito.
Aquilo era para os animar. Na verdade não tinha a mínima ideia, mas não valia a pena estar a fazer mais histórias.  
Os homens sorriram, mais distendidos, mas também por delicadeza para com a rapariga. Ela tinha-lhes feito o favor de ler o jornal, de outra maneira, não saberiam de nada, feitos uns brutos, pensou o Santa. E para afastar de vez o sobressalto, chegou-se à frente.
– A menina, se não fosse pedir demais, podia ler só mais essa, a do testa de boi?
Ela riu-se, fez que sim. E recomeçou a toada, as palavras umas atrás das outras, todas seguidas. Eles escutaram, em silêncio recolhido, de olhos no chão.



sexta-feira, 17 de junho de 2011

Apelo do moinho


Esta paisagem nunca me cansa. Quer crer que avistei há dias, aqui da janelita virada a leste com’á porta, por causa dos ventos marítimos, cheguei a avistar uma águia–de-boné, como vocês lhe chamam, que dizem qu’é bicho raríssimo. Nunca me cansa. E olhe que já é o terceiro incêndio qu’eu choro daqui nos últimos quatro anos, qu’até a nha senhora do último se consumiu porqu’ele já vinha monte acima e as labaredas haviam de me lamber a camisa antes qu’às velas do moinho, eu havia de cá torrar com ele, não o abandonava por nada, foi por um triz.
E depois dá-me gozo rodar o mastro, rodá-lo conforme o vento pede, tanto pode tar um vento do mar como de dentro, qu’a gente acompanha sempre de modo às velas encararem o ar, e isso é qu’é estar de bem com a natureza, né, pr’a isso julgo eu que não é preciso ser engenheiro. Isto não é para me meter consigo, que vê-se logo qu’a doutora tamém lhe puxa às vezes pr’á contemplação.
Houve um estrangeiro que fala português que pelo Natal me diz senhor Benedito Alcains, se eu pudesse levava-o a si e ao seu engenho para onde lhe dessem valor. Ora eu até me ri, diga-me lá ond’é esse paraíso, se houvesse valor se calhar não havia vento, havendo vento com fartura carecia do valor ou pessoas qu’o dessem, temos que ir indo assim, uns dias mais conformados qu’outros, né.
Há vento todo o ano, principalmente no Verão, não falta bom trigo pr’a moer qu’até há quem lhe chame biológico, por não ter cá químicos, o que não há é condições pr’a eu me governar aqui, pois. E o nosso presidente Seara, veja-se bem a ironia do apelido, quando passou aí na última campanha, até chamou ao meu moinho “indispensável recurso didáctico que outrora desempenhou um papel preponderante numa economia rural marcada pela subsistência”, parece que foi assim, ficaram-me estas palavras, veja lá a minha memória nesta idade. Podia aproveitar para pôr a escrita em dia, até o neto do Timóteo já me disse Tio Benedito é só querer qu’eu meto-lhe tudo no computador e faz-se um livro. Ma eu não vou nessa, qu’isso ocupa munto as ideias e eu sem estudos e tenho receio dessas doenças da cabeça que agora andam pr’aí, arzais, ABCs e tudo o mais.
Eu aproveito d’a doutora estar aqui, que não sei quando volta, com tanto a fazer lá no seu ministério, e com’isto felizmente já não é como nos tempos de moçoilo, que falávamos a dizer o que ia mal e arrecadavam logo a gente a pão e água, aproveito e só peço que lá nas reuniões d'altos lugares se lembrem aqui do Alcains e deste esmorecido moinho a fugir do passado a passadas largas. Qu’o moinho está em bom estado, sempre sem parar, e que não o deixem morrer cômigo, quand’eu for, pronto, né. É isso que me consome, só isso. E já agora, isto não sendo da minha conta, tá claro, mas qu’olhem pelo resto da paisagem que se alcança daqui, qu’a mim já me parece que não é só ao moinho que faltam com a palavra, e digo isto não é para ofender, ma isto tá-se tudo a ir embora, hã, né? Adeus, doutora, ficava agradecido, gosto sempre de a ver por aqui, adeusinho.

(Foto de João Luís Dória)

quinta-feira, 16 de junho de 2011

Uma cena de ciúmes


Uma sombra de cinza pairava sobre aquela parte da cidade, como se houvesse ali uma maldição particular que enchia os corações de escuridão.

Desci da carruagem a sentir nojo pela rua enlameada, a olhar a medo as lúgubres fachadas. O cocheiro largou para o centro, a chicotear os cavalos e fiquei sozinho. Fui tocado ao de leve pelo frio cortante do vento, num arrepio.

Encontrei os polícias numa rua interior do bairro operário. Estavam dentro de um prédio de cinco andares, ruidoso e sobrelotado. Os curiosos indicaram-me o caminho. Julgaram que eu era também polícia e alguns chegaram a tirar os barretes da cabeça. Fui subindo, bastava avançar para o ponto onde houvesse mais gente com ar pasmado. Segui por corredores esconsos e cheguei ao buraco onde estavam os detectives e o médico legista. E os dois corpos das vítimas.

quarta-feira, 15 de junho de 2011

'Homejacking'



Eis senão quando, um barulho forte rasgou a noite numa ponta.
Deixei de ouvir a televisão, como quando passa um avião. Uma sirene aproximava-se, mais e mais, ao fundo da rua.
– Para quem será?! – Indaguei em voz alta, como se estivesse a falar sozinho.
O estardalhaço tornou-se atroante e entrou pelas janelas da sala através do vidro duplo, sem esmorecer. Num apito arrastado, parou. As luzes ficaram a girar azuis nas paredes, através das janelas e das ranhuras das persianas. O efeito era bonito, algo hipnotizante até, como se a sala se tivesse transformado num salão de baile da aldeia, mas pequenino.
– Deve ser para a velhota lá de baixo, coitada. Volta e meia tem um achaque próprio da idade – especulei, outra vez em voz alta. – Ou para os gordos ali de frente. Se levantasse um dos estores e espreitasse lá para baixo tirava todas as dúvidas, mas não quis mostrar-me.
Uma porta rangeu e vozes inundaram o fundo da escada. De imediato, carreguei no mute do telecomando. A voz esganiçada da porteira e outra mais grossa, mas quase em murmúrio, misturaram-se, sem deixar perceber o que diziam, mesmo para quem já estava colado à porta a ouvir com atenção. Até tirei os óculos para escutar melhor, mais encostado ainda, a sentir na orelha o vento que entrava pela frincha.
Ao bater de uma porta seguiram-se passos, de vários pares de pernas, cada vez mais próximos.
E um silêncio sepulcral. Até o tlic, tlic, tlic da luz a girar lá fora se ouvia.
Detiveram–se no meu patamar. Cheguei-me para trás e engoli em seco, mas com algumas perspectivas optimistas.
– Olha, é aqui para o Engenheiro do 5º esquerdo – deduzi, mas desta vez caladinho que nem um rato e a roer uma unha que estava lascada.
Seguiu-se novo silêncio, que acompanhei de sobrancelhas coladas às pestanas, e um susto.
Saltei com o sobressalto, quando ouvi a minha própria campainha tocar, seguida por um segundo apenas de silêncio e três batidas fortes na madeira, daquelas de mão aberta, e mais dois toques insistentes na campainha que até desafinou. Apaguei a televisão, para que não vissem luz ou movimento por baixo da porta – que eu não sou parvo – e sentei-me sossegado, no chão, para que o sofá não rangesse. Fiquei a ouvir o trote das minhas pulsações e a ver as luzes azuis que passeavam sem se desviar dos quadros e das esquinas da divisão.
Alguém segredou qualquer coisa que não consegui perceber e parei logo de pensar. E mais silêncio.

terça-feira, 14 de junho de 2011

Desperdício


Era um dos miúdos mais pobres da aldeia, mas não foi por isso que deixou uma impressão indelével na jovem professora que em início de carreira, nos anos 50, tinha sido colocada naquele fim de mundo, perdido no meio da serra. “Foi o meu melhor aluno”, contava ela, muitos anos mais tarde. “O Orlando aprendia com uma facilidade como nunca vi, era extraordinário”. Tão extraordinário que ela tentou por todos os meios que a criança continuasse a estudar depois de ter feito a quarta classe. Infelizmente, apesar de todos os seus esforços e diligências – “sei lá com quantas pessoas falei”, recordava – Orlando ficou por ali. A hipótese do seminário era demasiado longínqua e irreal numa família para a qual mais um par de braços no campo podia ser a diferença entre comer e não comer.

A professora nunca esqueceu o aluno extraordinário, que apesar da apetência e da curiosidade, da rara capacidade de aprendizagem e do seu próprio desejo, tinha ficado pelo caminho. Orlando era uma espécie de derrota dos seus sonhos de jovem professora, recordava-o sempre com alguma mágoa. E sempre dizendo que tinha sido o seu melhor aluno, mesmo depois de muitos anos a ensinar numa escola perto de Lisboa e de muitas outras crianças terem passado pela sua sala de aula.

Então, um dia, aconteceu uma coisa inesperada. Um homem com os seus trinta e pouco anos, acompanhado de uma mulher jovem e de uma criança que não teria mais do que dois ou três anos, bateu-lhe à porta. “Venho visitá-la, senhora professora”, disse ele com um grande sorriso. Passada a primeira surpresa, ela não precisou de muito tempo para reconhecer o garoto de quem falava tantas vezes. “Fiz o sétimo ano, a trabalhar e a estudar”, contou-lhe nessa tarde, enquanto segurava o filho nos braços e sorria, feliz. E ela, outra vez professora de Orlando, mas já sem a mágoa nos olhos, respondia-lhe, “então agora é a universidade, Orlando, tu tens tantas capacidades”. Ele ria-se. “Isso é mais difícil, com o miúdo e tudo. Vamos ver, vamos ver”.

Não sei se Orlando chegou a fazer a universidade, ele não voltou a casa da antiga professora. Mas também não precisava. O essencial estava cumprido: tinha continuado a estudar, procurara-a para lho dizer, ela podia ficar tranquila. E sei que ficou, conheci-a bem. Mas lembrei-me desta história no outro dia, quando me contaram que há jovens numa zona industrial do centro do país a anular as matrículas no ensino secundário. Os pais ficaram desempregados, com a falência de várias empresas na região, e eles precisam de procurar trabalho para ajudar as famílias. Uma professora não escondia a angústia por as novas situações de pobreza obrigarem estes adolescentes a abandonar a escola e falava com mágoa do enorme desperdício, perante o qual se sentia impotente. Talvez um dia, daqui a uns anos, essa professora receba a visita inesperada de um jovem adulto, para lhe contar que conseguiu completar o 12º ano, à custa de um esforço, que hoje, 37 anos depois do 25 de Abril, não devia ser uma necessidade. Ou talvez isso não chegue sequer a acontecer.


* Este texto foi publicado no blogue Delito de Opinião, no dia 10 de Maio, na sequência de um convite do Pedro Correia que me honrou muito e que, daqui, volto a agradecer-lhe. Já depois disso, surgiram no Diário de Notícias e no Público notícias dando conta de vários casos deste tipo no País. Pela actualidade, aqui o deixo também aos leitores do Emoções Básicas

sexta-feira, 10 de junho de 2011

Em três tempos

A meio de uma dor psicológica aguda, o difícil é cingirmo-nos ao momento presente e aí, exclusivamente aí, buscarmos força. O presente é uma linha de cumeada grave, estreita e escorregadia, ladeada por duas encostas íngremes tombando impiedosamente: a encosta do passado, talvez a da esquerda, a encosta do futuro, talvez à direita.
É dolorosamente tentador resvalar o pensamento para as recordações de um passado que prometia não acabar, deixar o pé escorregar por um piso de momentos que não voltarão, chão que em tempos pareceu firme e agora nos atola, que urge evitar porque, só por ter existido e findado, nos fere a articulação da vontade.
E não é possível inclinarmo-nos demasiado na direcção oposta, sob o risco de cairmos no apetecível declive do futuro, para onde pendem cheios de tentação os nossos pés e a nossa esperança de que o presente termine rápido. Encosta quase tão traiçoeira quanto a primeira, atrai-nos para o que ainda não existe, obriga a nossa mente iludida a errar por terrenos que ainda não conquistámos.
É duro o percurso na trave olímpica do presente, onde apenas cabe um pé de cada vez. Onde a saída se resume a colocarmos o outro à frente desse, olhando em frente mesmo sem se ver nada, suando pelo equilíbrio, sem parar, sem correr, só um pé adiante do outro até que o carreiro desague no futuro suave do tapete plano e sem declives. Aí podemos, agora sim,espreguiçar a esperança em presentes melhores, alinhar as boas recordações como pérolas, porque existiram, e não como espinhos, porque acabaram.

segunda-feira, 6 de junho de 2011

Primeiras capas

O PROCESSO - Franz Kafka (1925)




*A capa da primeira edição de O Processo de Kafka assemelha-se a um verdadeiro livro de arquivo. Ou seja, um livro onde o poder se serve da palavra, da linguagem, para vigiar e punir. O que vale não é já o real, mas a forma que ele adquire no texto judicial. A palavra não designa o real. Nomeia-o e ao nomeá-lo fá-lo existir.
Mas o que fica em arquivo é também o que se destina ao esquecimento. O esquecimento que é para Walter Benjamin (Hiena, 1987)uma das ideias basilares das obras kafkianas. Nesta capa, simples,soturna, sem identidade, que parece destinada a ser coberta pelo olvido, está a história de K., apanhado na "obscura matriz dos tempos" e pelo poder da palavra.

domingo, 5 de junho de 2011

Primeiras capas

A METAMORFOSE- Franz Kafka (1916)



*Ao contrário das edições modernas,esta capa não impõe uma interpretação da história. Dá-nos antes uma imagem que vai de encontro à sua essência: a ambiguidade, a estranheza, o indizível.